quarta-feira, setembro 09, 2020

493. O amor não é para aqui COVIDado

 A cena passou-se hoje na sala de espera do hospital. Os bancos de quatro lugares foram alterados de forma a só permitir a utilização dos dois lugares de topo, tendo sido colocados autocolantes a indicar que os dois lugares do meio tinham sido proibidos. As regras de distanciamento assim exigem e as pessoas de forma geral obedecem. Como havia poucos lugares, especialmente depois da aplicação desta regra, levantei-me de um banco de quatro onde só estava sentado eu. Passado algum tempo, um senhor de idade sentou-se no lugar que eu tinha ocupado. A esposa sentou-se ao lado, no lugar proibido. A funcionária que estava na recepção veio logo chamar a atenção. Resposta da senhora: "Mas eu sou casada com ele!", ao que a funcionária responde, com a calma de quem está calejado de tanto lidar com situações destas: "Pois, mas não é casada com o senhor que se vai sentar na outra cadeira." 

492. Sorte ou azar, eis a questão

Li esta semana a estória de Tsutomu Yamaguchi, que é o exemplo perfeito de que a sorte e o azar são muito relativos. Este senhor estava em Hiroshima a fazer um serviço para a empresa para a qual trabalhava quando rebentou a bomba atómica. Ficou surdo de um ouvido, teve cegueira temporária e ficou com queimaduras no corpo. Mesmo assim, três dias depois apresentou-se na empresa, em Nagasaki, e estava a explicar ao patrão o que tinha acontecido - este último não percebia como uma bomba tinha conseguido destruir uma cidade, - quando caiu a segunda bomba atómica. Das setenta pessoas que se pensa terem estado nas duas cidades no momento da explosão das bombas, é o único caso oficial. Morreu em 2010, aos 93 anos. A sorte e o azar são duas faces da mesma moeda. O que interessa é seguirmos em frente. 

quinta-feira, maio 09, 2019

491. Oh my GoT, Marketing Viral!

Quebro o silêncio para constatar um facto banal: o mundo é conduzido implacavelmente pelo marketing e pela publicidade em geral. Basta olharmos para as ruas de qualquer cidade, qualquer canal de televisão, revista ou página de Internet (que não seja a Wikipedia, que ostentam orgulhosamente a bandeira se só fazerem publicidade a eles próprios). Tudo isto tem custos e sustenta uma das indústrias mais rentáveis que existe no mundo. 

Basta vermos os filmes de Hollywood: não há um único filme urbano que não tenha uma personagem que trabalhe na área. Mesmo assim, neste sistema onde tudo é pago, há fenómenos quase inexplicáveis que de um momento para o outro se tornam extremamente populares. Chamam a estes fenómenos de "marketing viral" e grassam nas redes sociais como verdadeiras ervas daninhas que furam o sistema e provam a fragilidade de toda a indústria. 

Um exemplo típico aconteceu no 4º episódio da Série Game of Thrones. Alguém reparou que havia um copo que aparentava ser da Starbucks em cima de uma mesa de um banquete que era suposto passar-se na época medieval (e sim, ainda não existia Starbucks, muito menos café). Este facto foi imediatamente notado e foi propagado pelas redes sociais mesmo depois de ter sido apagado da versão oficial pelos produtores da série. Geraram-se múltiplas versões e tornou-se mundialmente conhecido - afinal, tinha sido a coisa mais interessante do episódio antes da Missandei ter perdido a cabeça. 

Hoje veio a público o ganho astronómico que a cadeia de cafés americana arrecadou em publicidade gratuita, mesmo que tenha ficado provado que, afinal, não era um copo da Starbucks e nem tinha café mas um chá de ervas que a Emilia Clarke tinha pedido.

sexta-feira, novembro 30, 2018

490. Caminhos de Braga

    Saí da sala onde decorrera o evento com a firme convicção de que o trabalho proposto seria simples. Afinal, o que seria mais simples do que falar daquilo que se faz todos os dias? A constatação do meu erro foi quase imediata: como se encontra a relevância no que para nós é banal? Foi com esta dúvida na cabeça que atravessei o Largo de São João do Souto debaixo de uma chuva incessante. Puxei o capucho para cobrir a cabeça, ignorando o impulso de tirar o pequeno guarda-chuva de senhora que, num acto de desespero, tinha guardado na mochila. Queria sentir a chuva a cair e esta fez-se sentir. Dizem que Braga é o penico dos céus. Tive a prova disso no pequeno percurso que fiz até ao carro, como se São Pedro me quisesse pôr à prova para aumentar a autenticidade do relato.

    Segui pela rua do Anjo, passando pela famosa igreja de Santa Cruz, construída no Séc. XVII num estilo barroco maneirista. Reza a lenda que na sua fachada existem três galos em alto relevo e que a moça casadoura que os descubra tem casamento marcado para breve. Ignorei a fachada - já tinha descoberto os galos antes e, feliz ou infelizmente, nada acontecera e o meu estado civil manteve-se intacto. Dois turistas estavam na esquina da rua do Anjo, junto à famigerada fachada, mas estavam entretidos a tirar selfies à chuva. Fazem milhares de quilómetros para tirarem fotografias que podiam ter feito em casa, apontando a máquina para o espelho. Escapa-me o interesse destas novas tecnologias, penso, enquanto sigo pelo estreito passeio de granito irregular da Rua do Anjo. Os turistas seguem pelo mesmo trajecto, tentando ver algum motivo de interesse naquilo que eu já sabia não ter. Passo pelo largo de Santiago, depois sigo pela Rua do Alcaide, onde duas obras me obrigam a ziguezaguear entre os dois passeios, prova de que a cidade se está a renovar. Mais à frente chego ao largo de Paulo Orósio (e não Osório como alguns insistem em chamar). No meio do largo, uma estátua recente de Júlio César, que é o equivalente a colocarem uma estátua de Hitler no centro de Varsóvia. Para além da estupidez do acto, a mesma estátua é de uma estética duvidosa que em nada prestigia a cidade, no meu entender e do de outras pessoas cuja opinião me lembro de ter lido nas redes sociais e, sendo feita de plástico, sujeita a acidentes como o que aconteceu recentemente, para gáudio de muito boa gente.

    Passo em seguida pelo parque radical, complexo situado em Maximinos e que, além de diversas estruturas para práticas desportivas, ostenta um conjunto de grafittis de gosto duvidoso e uma escultura que tem uma ligação à cidade que me escapa: a de uma garrafa de coca-cola do tamanho de um homem.

    Cheguei ao carro completamente encharcado e com fortes dúvidas sobre o trabalho que me tinha sido pedido. O resto do caminho foi feito por uma via rápida que atravessava todo o vale de palmeira, único reduto dos arredores de Braga que ainda não foi tomado pela urbanização agressiva. A conquista, no entanto, já foi iniciada, primeiro com a construção do estádio numa pedreira (e que resultou, na minha opinião) no desperdício de uma boa pedreira. Depois do estádio começaram a aparecer grandes superfícies como se de uma metástase se tratassem, culminando no Nova Arcada, um centro comercial que veio desviar o pouco comércio que havia no centro da cidade.

    Depois do Nova Arcada, a paisagem muda. A alteração é visível, mesmo debaixo da chuva que teima em não querer parar. De repente a rusticidade dos campos de cultivo torna-se predominante, especialmente depois de atravessar o rio Cávado. Ao entrar em Vila Verde dou-me conta do aumento do trânsito, próximo da zona do Alívio, estranho nome para quem está parado à espera que o sinal vermelho das obras mude. Opto por um atalho que é substancialmente mais longo, mas com a vantagem principal de não ficar parado e a vantagem adicional de me lavar a alma com algumas das paisagens mais rústicas das redondezas - sinal irrefutável de que estava em casa.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

488. Fólicos Capilares

Assisti hoje a uma conversa do mais alto nível sobre cuidados a ter com fólicos capilares. Parecia que estava numa consulta de dermatologia, mas não. Estava na fila do supermercado e o caixa dava conselhos com evidente conhecimento de causa ao cliente que estava à minha frente.

Longe vão os tempos em que o caixa tinha o nono ano. Hoje temos doutores a passar o arroz e o feijão nas máquinas registadoras, um pouco por esse país fora. 

terça-feira, novembro 11, 2014

487. Surrealismo badalhoco

Devo ter princípios à antiga. Só pode. Hoje de manhã estaciono o carro no sítio de costume, nas traseiras de um café da moda de Braga. No passeio já tinha visto garrafas que os clientes espalhavam durante a noite, numa cópia de um costume espanhol. Mas de ver as garrafas a senti-las a partir por baixo dos pneus do carro vai uma distância que não me interessava percorrer. Paro o carro e olho para trás. Havia um monte de garrafas partidas no sítio onde tinha passado com o pneu. Como não as tinha visto, presumo que já outro carro tinha passado por cima delas.

Olho para o lado, e vejo outro monte de garrafas, atrás de um outro carro. Como tinha visto uma senhora da limpeza das ruas na rua imediatamente anterior, fui falar com ela. O diálogo, absolutamente surrealista foi algo como:
Eu: "Bom dia, estão ali vidros de garrafas, depois da curva."
Ela, enquanto limpava pacatamente folhas do passeio: "Eu sei, juntei-as em montes. Quando passar por lá, apanho-os."

Fui aos arames. Para facilitar o seu serviço, esta criatura tinha feito montes de garrafas por trás de carros, sem nunca lhe passar pela cabeça que os condutores podem não ver os montes. E mesmo se os vissem: iam andar a colocá-las novamente nos passeios?

Conclusão: devo ter mesmo princípios à antiga, e um mau feitio do pior. Só pode. (E, quem sabe, dois pneus furados.)

terça-feira, outubro 08, 2013

486. Progresso

Até há relativamente pouco tempo tinha a tradição de ir passar uma semana de férias no parque de campismo da Torreira. Gostava da calma da povoação, da areia branca das praias sem aquele tumulto de gente nas praias mainstream mais a sul, aquelas onde parece mal nós não irmos - mas o que é um facto é que, durante muitos anos, a Torreira era o nosso paraíso e pronto, não havia nada a fazer. Entalada entre o mar e a ria, numa língua de terra com 1 km de largura, tem um encanto que não consigo encontrar em qualquer outra terra. Por mais que digam que o mar é bravo ou que os fins de tarde são ventosos - dois factos que assumo, a calma com que regresso depois de uma temporada lá cura todos os males. Só o facto de pararmos o carro e irmos a pé para a praia, sem qualquer preocupação com estacionamentos ou atropelos de qualquer ordem, vale, sinceramente, a pena.
E, depois, temos o parque. Conheci-o há muitos anos, durante umas férias no grupo de jovens. Apaixonei-me instantaneamente pelo sítio e gostei do parque. Podia ter casas de banho antiquadas, mas eram limpas por gente que não incomodava os campistas. A zona sul do parque era ocupada pelos campistas residentes, que ficavam todo o ano e tinham as suas tendas arranjadas como se fosse uma aldeia onde todos se conheciam. Era simpático passear por entre estas tendas, gradualmente arranjadas para aumentar o conforto, muitas delas com motivos díspares que lhes davam um ar simpático. Dava gosto cheirar o cheiro dos grelhados e ouvir as conversas de gente que se conhecia há muito. Nós tinhamos a nossa tenda que tentavamos sempre montar próximo dos campistas residentes, longe das confusões das zonas mais afastadas onde os miúdos organizavam bebedeiras e festas mais ou menos ruidosas. Lembro-me de uma noite. É interessante que só me lembre desta noite. Os vizinhos começaram a imitar o som de animais. Nós ajudámos à festa e rapidamente o parque começou a parecer  um zoológico onde nós eramos os animais. No final fomos para a cama com o coração partido pelo facto de que, no dia seguinte, teriamos de montar a tenda e sair. Tinhamos a esperança de voltar no ano seguinte, mas não sabiamos que iria ser a nossa última noite no parque. No ano seguinte, quando chegámos para montar a tenda, encontrámos o parque em obras. Desanimados, procurámos outro poiso, ali perto, mas a magia tinha-se quebrado. As obras duraram anos. Quando tive conhecimento de que as mesmas tinham acabado, voltámos lá, esperançosos de que iriamos encontrar um parque ainda melhor - afinal, é para isso que se fazem as obras, certo? Errado, muito errado. À chegada fomos informados de que o parque ainda não tinha condições. Mas o pior ainda estava para vir. O parque tinha sido completamente remodelado por quem nunca tinha acampado na vida. A zona dos campistas permanentes tinha sido transformado num amplo parque de estacionamento de auto-caravanas. As árvores tinham sido cortadas. O parque tinha sido, pura e simplesmente, assassinado. Chamam-lhe progresso, mas dispenso este tipo de progresso.

segunda-feira, agosto 13, 2012

485. Cães


A rua estava escura – os cortes da crise tinham obrigado a isso e a Lua não ajudava. As luzes do carocha do meu tio eram as únicas coisas que iluminavam a estrada, como se fossem as únicas luzes que existiam no mundo. À nossa frente apareceram sombras brancas, movendo-se lentamente para a berma da estrada, em fila indiana. Cinco cães, quatro pequenos e um grande, a liderar. Um sexto estava no meio da estrada, evidentemente morto, os outros tinham o ar de quem tinha estado a se despedir e olhavam para nós com um misto de recriminação e mágoa. 

A dor de perder alguém não escolhe raças nem espécies. 

O respeito é universal. 

Só nós não entendemos isso: continuamos a pensar que tudo é nosso, um umbiguismo míope e desconcertante.